A iminente legalização da maconha no Uruguai deve transformar a nação vizinha no mais ousado laboratório de uma reviravolta em curso em diferentes países, com consequências diretas para a discussão do tema no Brasil. Na quarta-feira, os deputados uruguaios aprovaram projeto colocando sob tutela estatal o mercado da maconha, que poderá ser cultivada em casa ou comprada nas farmácias. A lei depende apenas da ratificação do Senado, que é dada como quase certa — sem data definida, a votação deve acontecer até o fim do ano.
Quando isso acontecer, o Brasil terá ao pé de si, do outro lado da fronteira, uma experiência ainda mais radical do que a holandesa, paradigma de tolerância em relação ao consumo de drogas ao longo das últimas décadas. Com os olhos do mundo inteiro postos no país vizinho, os brasileiros dificilmente ficarão indiferentes.
Rodrigo de Azevedo, professor da pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Estado (PUCRS), observa que tem havido uma crescente busca por políticas alternativas, motivada pelo fracasso da estratégia de criminalização no combate ao tráfico e à violência relacionada a ele:
— A experiência uruguaia é avançada, inclusive em relação aos exemplos europeus, onde não ocorre a regulamentação efetiva do mercado. Se for bem-sucedida, pode ter efeito importante, elevando o nível de racionalidade do debate.
Essa linha de pensamento ganhou força nos últimos anos, quando figuras eminentes passaram a defender uma mudança de enfoque em relação à proibição das drogas, e diferentes países arriscaram políticas mais liberais no que diz respeito ao consumo.
No Brasil, um marco foi a adesão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Como presidente da Comissão Global de Política sobre Drogas, ele propôs a descriminalização do uso. Agora, apoia a proposta uruguaia. Outra guinada veio em maio, quando a Organização dos Estados Americanos (OEA) reconheceu o fracasso da política de guerra total e apresentou relatório em defesa da flexibilização das ações de repressão contra a droga.
A mudança de paradigma não significa aval ao consumo. Autoridades e profissionais da saúde continuam alertando para os males causados pelas drogas. No entanto, passaram a concluir que o tráfico e as mortes associadas a ele são um problema mais grave do que o consumo.
Apesar da tendência mundial de repensar a estratégia antitráfico, Marcos Rolim, professor de direitos humanos do IPA, diz que a iniciativa uruguaia terá impacto limitado no Brasil.
— O mundo caminha no sentido de rever o proibicionismo e vai prestar atenção ao Uruguai. Novas experiências vão surgir na América Latina. Mas as consequências no Brasil tendem a ser pequenas, porque aqui as pessoas não se deixam mover por evidências. Quem é a favor da atual política de drogas vai continuar a favor, e quem é contra vai continuar contra — prevê.
Ex-titular da Secretaria Nacional Antidrogas, o jurista Wálter Maierovitch entende que a experiência uruguaia merece respeito e deve incentivar o debate, inclusive no Brasil:
— O tema do momento é o modelo português, que vê o usuário como uma vítima de si mesmo, que deve receber tratamento, e não ser enquadrado no código penal. É a única política que tem dado certo e, por isso, passou a ser recomendada pela União Europeia.
Fronteira teme prejuízo no turismo de freeshops
Em Rivera, cidade uruguaia que faz fronteira com Santana do Livramento, as opiniões sobre a legalização da maconha também se dividem — assim como a votação apertada, de 50 deputados a favor e 46 contra, que garantiu a ida da proposta para o Senado. Alguns moradores acreditam ser um avanço, outros veem como retrocesso. Em ambos os lados, nota-se a falta de informação sobre os detalhes do projeto.
Do lado brasileiro, a sensação é de medo. O temor é de que a cidade, que hoje vive do turismo de compras e freeshops, se transforme em um centro de turismo de drogas.
— Falaram que vão liberar, mas não informaram como vai ser. Sai só alguma coisa rápida nos jornais, na TV, nas rádios, mas não tem um debate forte pela comunidade. Acho que não estamos preparados — diz o fiscal de trânsito uruguaio, Marcelo Alves, 41 anos, que prevê mais mortes ao volante em razão do uso da droga.
Representantes de seis farmácias consultadas preferiram não comentar o assunto:
— Ainda não sabemos como será feito o processo. Então, é melhor não emitir opinião — disse o funcionário de um dos estabelecimentos.
A vendedora Cleusa Gomes, 44 anos, acredita que a legalização pode salvar muitos usuários da insegurança à qual se submetem para conseguir a droga de maneira ilegal.
— Acho que tem de liberar. É hipocrisia e alimenta o tráfico de drogas negar isso — afirma.
Como o governo tem ampla maioria no Senado, é provável que o projeto seja aprovado. Do lado brasileiro, na Escola Estadual de Ensino Médio Nossa Senhora do Livramento, onde cerca de 5% dos 600 alunos são uruguaios, a vice-diretora Rosilene Dalmolin teme que a aprovação seja um incentivo para o consumo.
— Apesar de os nossos alunos não se envolverem com drogas, temos medo. Por isso, estamos fazendo sempre projetos e palestras antidrogas, alertando para os malefícios. É uma questão que precisamos estudar. Agora, ainda mais.
Legalização da maconha em outros países
— A Câmara dos Deputados do Uruguai aprovou na quarta-feira um projeto de lei que legaliza o cultivo, a comercialização e o uso da maconha, sob controle do Estado, como forma de combater o tráfico. A aprovação depende do Senado.
— O cultivo da maconha é permitido para fins médicos no Canadá. Na década passada, o parlamento colocou em votação dois projetos que descriminalizavam a posse de pequenas quantidades para consumo próprio. Em ambos os casos, a proposta foi rejeitada.
— Nos Estados Unidos, cerca de 20 das 50 unidades da federação liberaram a venda e o uso para fins medicinais. Em novembro de 2012, eleitores de Colorado e Washington aprovaram a legalização da produção, da venda e do consumo da droga. Em ambos os Estados, é permitida a posse de quantidade limitada para maiores de 21 anos.
— Em 2011, Portugal tornou-se o primeiro país europeu a descriminalizar o consumo de drogas, ainda que mantenha as substâncias fora da lei. O usuário passou a ser considerado um doente crônico, que não sofre sanções penais, reservadas a quem produz e trafica.
— A Colômbia convive com narcotráfico e guerrilhas relacionadas a ela. O presidente Juan Manuel Santos declarou estar aberto a discutir a legalização como estratégia alternativa de combate. Em Bogotá, o prefeito Gustavo Petro propôs a construção de centros onde viciados poderiam consumir as substâncias. A posse para usuários é descriminalizada.
— Desde os anos 1970, a Holandatem uma legislação que permite a venda e o consumo de drogas leves como a maconha, em pequenas quantidades, em locais específicos, conhecidos como coffee shops. No ano passado, o governo holandês criou regras que tornaram mais restrito o acesso a esses estabelecimentos.
— O porte para uso pessoal não é criminalizado no Chile. O uso em público é punido com multas, serviço comunitário ou encaminhamento a programas de prevenção. Há iniciativas de senadores para despenalizar o cultivo para fins pessoais.
— No México, assolado pela violência relacionada ao tráfico, o ex-presidente Felipe Calderón incentivou o debate sobre a descriminalização, que vem sendo discutida no Congresso. A posse de quantidades consideradas de uso pessoal da droga não é crime.
OS EFEITOS
O que dizem os estudos médicos sobre os malefícios causados pela maconha
— Perda de memória: o consumo frequente antes dos20 anos reduz a capacidade cognitiva, comprometendo até 30% da memória e da capacidade de planejamento e organização.
— Desempenho escolar ruim: o uso por jovens multiplica as chances de evasão escolar.
— Uso de drogas pesadas: a maconha pode funcionar como porta de entrada para outras drogas.
— Depressão e esquizofrenia: a droga está associada à depressão e à esquizofrenia. Um estudo verificou que as pessoas que começaram a usar a maconha adolescentes eram quatro vezes mais propensas a sofrer dessas doenças.
DÚVIDAS NO AR
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— A maconha já está legalizada no Uruguai?
Ainda não. Na quarta-feira, os deputados aprovaram a lei, mas o projeto ainda precisa ser submetido ao Senado, onde a aprovação é dada como certa.
— Como vai funcionar a produção da maconha?
O controle vai ficar nas mãos do governo. Será criado um órgão estatal, o Instituto Nacional de Regulação e Controle da Maconha, para conceder licenças e regular a importação, a produção, o armazenamento, a distribuição e a venda da maconha. Ainda não estão claros quais serão os critérios do licenciamento.
— Será possível cultivar a droga para consumo próprio?
Sim. Cada indivíduo poderá manter seis plantas, com uma produção máxima de 480 gramas ao ano.
— Será possível fazer propaganda da droga?
A lei veta a publicidade de maconha.
— Onde a droga poderá ser adquirida?
Haverá venda em farmácias. A lei prevê que se possam criar clubes com 15 a 45 sócios para a produção. Um clube poderá cultivar um máximo de 99 plantas.
— Qualquer pessoa poderá comprar a droga?
Não. A aquisição será apenas para pessoas maiores de 18 anos que residam no Uruguai e se registrem.
— Haverá algum limite para o consumo?
Cada pessoa poderá adquirir até 40 gramas por mês. Essa também é a quantidade máxima que o indivíduo poderá ter consigo.
— Por que o Uruguai resolveu legalizar a droga?
O argumento do governo é que a legalização acabará com os cartéis do tráfico, principais geradores de violência. Outra aposta é que a oferta legal de maconha desestimule o consumo de drogas mais pesadas.
Fonte: zerohora.clicrbs.com.br/rs